quinta-feira, 7 de abril de 2022

Diário de bordo #2: Park No-soo, Honeyed omija, café gelado e Hanoks

O amanhecer solarengo antecipa uma boa jornada. De café gelado em riste, avançamos O caminho, curto, é feito por entre ruelas nas quais os tradicionais telhados curvos das Hanoks coreanas sobressaem. A alma da cidade, do país, essa, sente-se, preservada no rosto aberto de um povo orgulhoso, que lida com o sofrimento e mudança desde há séculos, preservando, ainda assim, a esperança, uma síntese das vitórias que tiveram e das inúmeras que terão. 


A ideia inicial é a de que o povo Coreano é extremamente quente e acolhedor. Raros são os casos em que circulam pessoas sozinhas. Aos pares ou trios, homens de negócios, amigos em casuais passeios matinais, mulheres que cruzam olhares intrigados, casais que se passeiam de mão dada, a sensação é a de que aqui o mais importante são as relações entre pessoas.


A nossa primeira paragem situa-se numa das colinas do bairro de Jongno-gu, museu do prolífico e talentoso artista coreano Park No-soo (1927-2013), que tendo vivido 86 anos presenciou praticamente todas as enormes transformações que a Coreia do Sul sofreu ao longo do século XX. O museu, antiga casa do artista, alberga algumas das suas obras, todas elas exemplificando o majestoso uso das cores vivas e translúcidas que caracterizam as montanhas, o rio, as cerejeiras em flor e os animais, elementos de significativa importância na obra de Park.

Esta casa-museu mantém a natureza original da sua habitabilidade, destacando-se aqui a secretária de trabalho do artista, na qual podemos ver ainda os pincéis, os pigmentos e todos os demais utensílios utilizados pelo artista no seu trabalho. 


Estátua do artista Park No-soo

Finda a visita, prosseguimos a nossa caminhada. 

A meu ver, numa  viagem, a nossa percepção cultural primordialmente advém do simples ato de andar. O olhar atento que as pernas suportam é a chave. Aqui, em Seul, os autocarros são verde garrido, as padarias são constantes, os vendedores de peixe ambulante anunciam por megafone a sua presença, os mais velhos energeticamente coabitam por entre ruelas, lojas, cafés e restaurantes. Máquinas de arcade, karaokes em caves, anúncios de novelas e filmes dos anos 80, mercados, são apenas amostras de como a vida abunda na capital da terra do tigre branco. 

A meio da tarde, acabamos por entrar numa pequena loja cujas delicadas chávenas de chá, ornamentadas com lindíssimas pinturas nos convidam a entrar. Lá dentro, provamos uma bebida que orgulhosamente o anfitrião nos presenteia. Honeyed omija, uma bebida de tons rosados, fresca, simultaneamente doce e áspera nas quantidades certas. Um prenúncio dos muitos contrastes que nos aguardam nesta jornada. 



O tempo corre e pouco se importa se a nós nos apetece andar menos rapidamente. Os neons garridamente coloridos invadem a noite que acaba por chegar. O jantar, noodles frios com molho de soja, é preparado a escassos metros de onde nos sentamos, qual espetáculo gastronómico. Ladeados por locais sorridentes, temos a certeza que escolhemos o sítio certo para comer, mais que isso, para terminar o dia.





quarta-feira, 6 de abril de 2022

Diário de bordo #1: Na terra do tigre branco


Na partida há o descrédito do cansaço, a excitação da novidade, a antecipação do que estará no outro lado do mundo. De Lisboa, se fosse possível esgravatar a terra numa linha reta, pouco faltaria para encontrarmos o destino desta viagem, a Coreia do Sul. No entanto, e como ainda não foram inventadas escavadoras à prova de magma, teremos de nos cingir ao avião, sentidas desculpas por isso ao sonhador Júlio Verne. Para tal empreendimento, o de alcançar o outro lado do mundo, são precisas 15 horas de viagem, intercaladas numa escala de 4 horas, desta feita, na Finlândia, distante e fria Europa.



No aeroporto de Helsínquia, o tal no qual é feita escala, a neve ladeia os infinitos e castanhos campos, sem nunca tocar o alcatrão que recebe e expulsa os aviões. A timidez invade o meu solitário passeio pelas portas de embarque. Sinto uma exasperada insignificância ao aperceber-me que a partir dali se pode chegar a Los Angeles, Tóquio, Pequim, Londres ou Melbourne. Os parcos metros que separam os aviões que dali partem distanciam ligações para os quatro cantos do mundo, expressão que geometricamente contraria o modelo esférico da terra. Serão todos os portugueses disfarçados terra planistas?


Seoul seria o meu destino. Encontrada a porta, espera terminada, findas as obrigações burocráticas para quem para tão longe viaja, pacificamente fui recebido nos espaçosos corredores do Airbus A350. 

Empédocles, filósofo pre socrático, de tal forma alimentava expectativas positivas para a sua própria natureza “divina” que um dia, na ânsia de as provar aos demais Sicilianos, se atirou para dentro de um vulcão vivo. Já eu, alimentei a mim próprio que apesar de longa, esta seria uma viagem de avião intelectualmente prolífera pois para além de ler os 4 livros que tinha na sacola, iria ter ainda tempo de encher dois diários gráficos com desenhos. Ora no caso de Empédocles, e à falta de melhor termo, este acabou “esturricado”. Já eu, fiz dois ou três desenhos, e nem metade de um livro terminei, passando a maior parte das longas horas a tentar, falhando miseravelmente, dormir. 

Todavia, o tempo, ainda que empiricamente percecionado, neste particular caso penosamente percecionado, acaba sempre por tomar o seu rumo unidirecional, transfigurando a realidade que nós próprios antecipamos de acordo, ou contra, as nossas expectativas. Aterrando, finalmente, em Incheon, e findas as finais obrigações burocráticas, Seoul estava finalmente muito perto. 


No curto caminho, campos de golfe, um enorme porto, o segundo maior do país, enormes e coloridos cartazes com anúncios garridos. Estava longe, dentro de um sonho, ou de um filme, uma percepção ampliada pelo pouco e nefasto sono anteriormente tido. 

Ao chegar, no entanto, uma sensação familiar, a do conforto de um quente caldo de carne, um nome estranho, Galbitang, mas o mesmo conforto da canja da Dona Maria. É a prova de que onde e com quem quer que possamos estar, teremos sempre como certas e universais as emoções mais primárias. As mesmas que, em circunstâncias agora diferentes, desejava repetir de outras passadas aventuras.

Desta feita, seria a aventura na terra do tigre branco. 







Dias 11, 12, 13, 14, 15, 16 … de Maio, diário de bordo #15, final: Breve despedida

Reflexões. Olhar de novo o que já foi visto, como se de uma primeira e última vez se tratasse. O gesto do desenho substitui as palavras. São...