quarta-feira, 6 de abril de 2022

Diário de bordo #1: Na terra do tigre branco


Na partida há o descrédito do cansaço, a excitação da novidade, a antecipação do que estará no outro lado do mundo. De Lisboa, se fosse possível esgravatar a terra numa linha reta, pouco faltaria para encontrarmos o destino desta viagem, a Coreia do Sul. No entanto, e como ainda não foram inventadas escavadoras à prova de magma, teremos de nos cingir ao avião, sentidas desculpas por isso ao sonhador Júlio Verne. Para tal empreendimento, o de alcançar o outro lado do mundo, são precisas 15 horas de viagem, intercaladas numa escala de 4 horas, desta feita, na Finlândia, distante e fria Europa.



No aeroporto de Helsínquia, o tal no qual é feita escala, a neve ladeia os infinitos e castanhos campos, sem nunca tocar o alcatrão que recebe e expulsa os aviões. A timidez invade o meu solitário passeio pelas portas de embarque. Sinto uma exasperada insignificância ao aperceber-me que a partir dali se pode chegar a Los Angeles, Tóquio, Pequim, Londres ou Melbourne. Os parcos metros que separam os aviões que dali partem distanciam ligações para os quatro cantos do mundo, expressão que geometricamente contraria o modelo esférico da terra. Serão todos os portugueses disfarçados terra planistas?


Seoul seria o meu destino. Encontrada a porta, espera terminada, findas as obrigações burocráticas para quem para tão longe viaja, pacificamente fui recebido nos espaçosos corredores do Airbus A350. 

Empédocles, filósofo pre socrático, de tal forma alimentava expectativas positivas para a sua própria natureza “divina” que um dia, na ânsia de as provar aos demais Sicilianos, se atirou para dentro de um vulcão vivo. Já eu, alimentei a mim próprio que apesar de longa, esta seria uma viagem de avião intelectualmente prolífera pois para além de ler os 4 livros que tinha na sacola, iria ter ainda tempo de encher dois diários gráficos com desenhos. Ora no caso de Empédocles, e à falta de melhor termo, este acabou “esturricado”. Já eu, fiz dois ou três desenhos, e nem metade de um livro terminei, passando a maior parte das longas horas a tentar, falhando miseravelmente, dormir. 

Todavia, o tempo, ainda que empiricamente percecionado, neste particular caso penosamente percecionado, acaba sempre por tomar o seu rumo unidirecional, transfigurando a realidade que nós próprios antecipamos de acordo, ou contra, as nossas expectativas. Aterrando, finalmente, em Incheon, e findas as finais obrigações burocráticas, Seoul estava finalmente muito perto. 


No curto caminho, campos de golfe, um enorme porto, o segundo maior do país, enormes e coloridos cartazes com anúncios garridos. Estava longe, dentro de um sonho, ou de um filme, uma percepção ampliada pelo pouco e nefasto sono anteriormente tido. 

Ao chegar, no entanto, uma sensação familiar, a do conforto de um quente caldo de carne, um nome estranho, Galbitang, mas o mesmo conforto da canja da Dona Maria. É a prova de que onde e com quem quer que possamos estar, teremos sempre como certas e universais as emoções mais primárias. As mesmas que, em circunstâncias agora diferentes, desejava repetir de outras passadas aventuras.

Desta feita, seria a aventura na terra do tigre branco. 







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